Artigo

Vamos falar sobre saúde mental de pessoas LGBTQIA+?

COMEÇAR DO COMEÇO, PARA NÃO NOS PERDERMOS NO MEIO…

Para começarmos é preciso demarcar porque estamos falando sobre saúde mental de pessoas LGBTQIA+, uma vez que essa pauta, perpassa as pautas de saúde, que devem ser universais e de acesso de todas as pessoas, como inclusive preconiza a Constituição Federal do Brasil.

Adoecer e lidar com as questões da vida, que perpassa pelos sentimentos e emoções é de fato algo universal, que não distingue sujeitos a partir de seu gênero, sexualidade ou comportamento, todavia, os obstáculos para lidar com essas questões podem ser agravados a partir de elementos sociais como, corpo, raça (inclusive já mencionado em um outro conteúdo aqui), e gênero e/ou sexualidade.

Por isso, para a promoção de práticas e políticas de saúde mental é preciso se atentar a essas especificidades vivenciadas por determinados grupos de pessoas, para que possamos ampliar os mecanismos de escuta, acolhimento e ferramentas para lidar com os desafios da vida. Por isso, começamos o texto explicitando, que sim, é preciso falar sobre saúde mental de pessoas LGBTQIA+!

 

MAS, AFINAL, COMO A LGBTFOBIA AFETA A SAÚDE MENTAL DE PESSOAS LGBTQIA+

Primeiro é preciso compreender que ao falarmos sobre LGBTfobia, adotamos a base conceitual feita por Pereira (2023), de que tal conceito não deve ser visto na restrição das siglas LGBT, que representariam especificamente apenas pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Travestis, mas sim, deve ser visto como uma representação macro dos preconceitos e práticas discriminatórias contra quaisquer pessoas da comunidade LGBTQIA+, assim, utilizamos o acrônimo reduzido, para meramente facilitar a leitura, e evitar a cacofonia que poderia ter na utilização de um termo como “LGBTQIA+Fobia”.

Quando falamos sobre as práticas de violência contra pessoas LGBTQIA+ o primeiro cenário que nos vem à mente são as agressões físicas, violências que deixam marcas e feridas físicas ou por vezes levam até mesmo a morte.  Essas representam ainda um patamar significativo da LGBTfobia, especialmente da transfobia, e que ainda hoje posiciona o Brasil como um dos países que mais mata mulheres e homens trans, travestis e pessoas não binárias.

Todavia, existe uma prática com número ainda maior, porém por vezes silenciada no debate público, especialmente por seus efeitos não serem tão transparentes, que são as violências psicológicas. Essas agressões podem ser endereçadas por várias pessoas, desde completo desconhecidos até familiares. Sue (2010) tem conceituado essas práticas como “microagressões”, violências diárias, por vezes escondida em comentários sarcásticos, ou até mesmo com um argumento de proteção, o que leva inclusive Takara (2020) a argumentar que toda pessoa LGBTQIA+ em alguma medida em sua vida já passou por argumentos de ódio, instalando inclusive verdadeiras pedagogias do (auto)ódio.

Silva et al. (2021) inclusive, chama especial atenção para os riscos de autolesão e suicídio que essas práticas de violência psicológicas podem gerar em adolescentes e jovens:

“Em meio a tantas pressões sociais, o adolescente torna-se mais suscetível a conflitos emocionais e sofrimentos psíquicos, especialmente ao se autoperceber em não conformidade com os discursos da heteronormatividade. Nesse contexto, muitos adolescentes apresentam determinados comportamentos de risco, incluindo o pensamento de morte e a tentativa de suicídio.” (SILVA et al., 2021, p. 2645)

 

É vital compreender neste cenário o papel da família e da escola na prática dessas violências, Hilário et al. (2020) menciona inclusive sobre a formação de verdadeiras pedagogias do silenciamento, práticas de agressões verbais e físicas que ocorrem especialmente na escola, e moldam a vida de pessoas LGBTQIA+ ao medo, quando passam a acreditar que sua única perspectiva de vida é a solidão.

Ora, por óbvio que a junção de fatores como: silenciamento, solidão, microviolências diárias, violências físicas e a baixa expectativa de vida, produz em pessoas LGBTQIA+, percepções de baixa autoestima, falta de projeção de futuro, um convívio ansiogêenico, e, em casos mais acentuados, pensamentos intrusivos autolesivos e/ou suicidas.

 

PROMOÇÃO DE SAÚDE MENTAL E PRÁTICAS DE CONTRANARRATIVAS 

Após entendermos que a saúde mental de pessoas LGBTQIA+, é diretamente atingida por questões inerentes a LGBTfobia, precisamos traçar uma reflexão sobre como enfrentar esta problemática.

Primeiro é preciso reconhecer que como pontuamos no início deste texto, políticas de saúde mental devem ser universais e de acesso para todas as pessoas. Entretanto, a universalidade não deve ser o mesmo que uma política com desenho universal, isto é, pensada para todas as pessoas. Não deve ser assim, pois já está comprovado por inúmeras correntes metodológicas, que a construção de um sujeito universal termina por representar apenas uma espécie de sujeito:, o homem, cisgênero, branco, heterossexual e de classes ditas superiores. Basta observar quem ainda hoje tem acesso contíinuo a tratamentos de saúde mental no Brasil?

Assim, práticas de promoção da saúde mental, precisam pensar desenhos de políticas públicas para as pessoas LGBTQIA+, entendendo inclusive que este grupo é composto por inúmeras formas de ser, o que implica tratamentos diferentes para a promoção da equidade. Por exemplo, um homem cis, gay, branco, terá muito mais acesso que uma pessoa não binária, bicha, negra. Dessa forma, é preciso que as práticas de promoção da saúde mental considerem as assimetrias causadas pelas violências sociais cis-hétero-normadas.

Segundo, é vital auxiliar que, especialmente crianças, adolescentes e jovens desenvolvam cada vez mais ferramentas para lidar com as emoções e os sentimentos gerados pela LGBTfobia. Não é sobre responsabilizá-los pela estrutura que lhes oprime, mas é sobre compreender que infelizmente essas estruturas milenares não serão desarticuladas repentinamente, e que enquanto isso não ocorra, precisam desenvolver formas de conviver com a dor psicológica que as violências e microagressões diárias gerarão.

Por fim, é preciso auxiliar na construção de contranarrativas, isto é, práticas que produzam novas possibilidades de futuro, afeto e acolhimento, afinal, isso poderá representar a estes sujeitos maior oportunidade de vida, para observar muito além da violência vivenciada.

Me recordo que só consegui afirmar minha identidade enquanto uma bicha negra, quando vi outra bicha negra, no lugar de Procuradora do Estado, esse espaço ocupado por ela, me fez perceber que é possível construir uma narrativa para minha vida para além da dor e do sofrimento que haviam me dito, e me oportunizou sonhar e criar novas esperanças e estratégias para lidar com o sofrimento causado pela LGBTfobia.

Assim, encerro este texto-ensaio, com um convite para que possamos construir juntas novas perspectivas e narrativas para o acolhimento, cuidado e promoção da saúde mental de pessoas LGBTQIA+, essas práticas não precisam necessariamente surgirem de uma política formal, mas podem advir de pequenos agenciamentos do dia a dia. E, parafraseando Takara (2020), gostaria de encerrar aqui perguntando: Você já se sentiu amado(a/e) hoje?

Referências:

PEREIRA, Wilson Guilherme Dias. ONDE ESTAVAM VOCÊS QUANDO EU PRECISEI? Percepções de vítimas de violência sexual infantojuvenil LGBTQIA+ sobre o Sistema de Garantia de Direitos de Porto Velho – RO. Porto Velho, 2023. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça. Fundação Universidade Federal de Rondônia.

SUE, Derald Wing. Microaggressions in everyday life: Race, gender, and sexual orientation. John Wiley & Sons, 2010.

TAKARA, Samilo. Você já se sentiu odiado hoje? : Pedagogias culturais do ódio acerca das desobediências da normalidade. Bagoas – Estudos gays: gêneros e sexualidades, [S. l.], v. 13, n. 20, 2020. Disponível em:< https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/19465>. Acesso em: 27 dez. 2022.

HILÁRIO, R. A.; DIAS PEREIRA, W. G. . Bichas pretas afeminadas: do silenciamento na escola a solidão na vida. REVES – Revista Relações Sociais, [S. l.], v. 3, n. 4, p. 03001-03011, 2020. DOI: 10.18540/revesvl3iss4pp03001-03011. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/reves/article/view/10389. Acesso em: 22 ago. 2021.

 

 

Wilson Guilherme Dias Pereira

Mestre em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR, graduado em Direito pela Faculdade Interamericana de Porto Velho e bolsista do programa sobre saúde mental para crianças e adolescentes da ASEC+.