Quando analisamos os dados a respeito da saúde mental da população negra, a reação imediata é um desconforto indignante. Apesar de dados serem importantes para reflexões e para legitimar tomadas de decisões, eles não devem ser utilizados como algo estanque ou para reforçar o racismo e gerar gatilhos onde já há muito sofrimento. Acreditamos que considerar as estatísticas a fim de compreender a necessidade da criação de ações e intervenções e de políticas públicas que tragam outros significados e novas possibilidades para a população negra, poderá trazer, de fato, uma mudança em nossa sociedade.
A cada dez suicídios cometidos no Brasil, seis são de pessoas negras (IBGE, 2019). Esse dado é ainda mais alarmante quando jovens negros do sexo masculino apresentam 45% maior probabilidade de suicídio, se comparado a jovens brancos, segundo cartilha divulgada pelo Ministério da Saúde (Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016).
Jovens deveriam ter sonhos e planos, já que há ainda uma vida toda para se “ganhar”. No entanto, esse mesmo documento apontou exatamente o oposto: as causas associadas ao suicídio dos jovens negros estão relacionadas a sentimentos de não pertencimento, de inferioridade, de rejeição, violência, entre outros. Porém, quais condições para sonhar oferecemos, quando 56% dos brasileiros se declaram negros ou pardos, mas temos uma desigualdade social brutal relacionada à cor e à raça no país?
Há muito o que se avançar com respeito à equidade de direitos básicos e fundamentais dos negros e pardos, quando comparado à população branca. A desigualdade social por cor ou raça no Brasil tem sua origem no racismo estrutural, historicamente desenvolvido no país. O sistema escravocrata e a violência que lhe é característica e, que perdurou quase 400 anos, trouxe como consequência para o desenvolvimento do país ao longo da história, níveis maiores de vulnerabilidade socioeconômica para as populações de cor ou raça preta, parda e indígena.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde não apenas como a ausência de doença, mas como um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Isso significa que ter saúde integralmente perpassa por um olhar mais abrangente para o contexto socioeconômico, o acesso à educação, ao saneamento básico, à moradia, ao trabalho.
Dados divulgados pelo IBGE, em 2022, revelaram uma preocupante realidade:
Trabalho e Renda
A renda das pessoas brancas foi, em média, 69% acima das pretas ou pardas;
A participação em cargos gerenciais mostrou maioria de pessoas brancas (69,0%);
Somente 14,6% de pessoas em cargos gerenciais de mais alta renda eram pretas ou pardas, sendo 84,4% brancas;
A proporção de pretos e pardos com rendimento inferior às linhas de pobreza, propostas pelo Banco Mundial, foi quase o dobro da proporção de brancos.
Moradia
pessoas pretas e pardas enfrentam maior informalidade da propriedade (pardas 20,8%, pretas 19,7%, brancas 10,1%).
Educação
A pandemia da Covid 19 acentuou a desigualdade. O percentual de estudantes pardos (13,5%) e pretos (15,2%) de 6 a 17 anos de idade sem aulas presenciais e sem oferta de atividades escolares foi mais de 2 vezes superior ao de brancos (6,8%).
Violência
Há maior incidência de violência física, psicológica ou sexual entre pessoas pretas (20,6%) e pardas (19,3%), com 18 anos ou mais de idade. Entre as pessoas brancas, a proporção foi mais baixa (16,6%).
Segundo o historiador, Marcos Faciaben, esses dados são uma herança histórica marcada pela exclusão e marginalização da população negra, pois o Brasil eliminou o sistema escravocrata há apenas cinco gerações e sem a preocupação com a integração do negro na sociedade como cidadão. “Ainda existem muitas dívidas da sociedade brasileira para com o povo negro, pois mesmo que tenha ocorridos avanços jurídicos e civilizatórios, a luta por igualdade e equidade está apenas engatinhando. Há necessidade de uma postura muito ativa por parte da sociedade e do Estado para a construção de uma mentalidade antirracista, que efetivamente possa levar a que todos os brasileiros, independentemente de sua cor de pele, vivam uma vida digna, segura e feliz”, explica.
Saúde mental da população preta: construção de outras narrativas que cuidam e recriam subjetividades feridas pelo racismo
A psicóloga Tayná Gomes, em sua monografia de conclusão de curso, desenvolveu uma pesquisa sobre a saúde mental da população preta, mais especificamente de mulheres negras de diferentes lugares do Brasil, com a proposta de buscar racializar, cada vez mais, a clínica e a psicologia. O objetivo do estudo foi não somente entender como o racismo afeta a saúde mental da população preta, mas, sobretudo, incentivar mulheres negras a construírem as suas próprias narrativas, para além daquilo que o racismo criou e sobre quem essas mulheres pretas podem ser. A proposta de racializar o cuidado psicológico para essa população foi visto pela psicóloga como algo fundamental, pois mesmo quando o profissional branco da saúde mental tem um letramento racial, ainda assim, fica uma lacuna na compreensão a respeito de experiências que não se vive e que não é sentida na pele. “Eu já ouvi muitos relatos de jovens pretos que foram revitimizados e passaram por experiências de racismo dentro da clínica, quando atendidos por profissionais brancos”, explica.
Em sua pesquisa, Tayná trabalhou com diversas formas de expressão para que o grupo de mulheres pretas entrasse em contato com a existência de um corpo preto que não é (e não deve ser) marcado somente pela dor. O teatro e a escrita da própria história de vida, escrita da existência, conceito cunhado pela escritora Conceição Evaristo como “Escrevivência”, junto a elementos da cultura africana, como a dança, a música e os rituais foram utilizados para trazer outros significados para as narrativas que são dadas para essas mulheres.
“Se o racismo me constituiu enquanto corpo preto, hipersexualizado e que é forte a qualquer custo, quais são as outras narrativas de cuidados e de sensibilidade que eu posso trazer para mim mesma?”
A escuta, o acolhimento, o “aquilombamento” (que é esse agrupamento de mulheres pretas), a sensibilização e construção de outras narrativas são, de acordo com a psicóloga, algumas das formas possíveis para fortalecimento da saúde emocional da população preta. “Meu desejo é que possamos acolher as nossas dores, mas sobretudo potencializar nossa existência, a partir de uma alegria de viver. Trabalhar com a saúde mental da população preta é não visualizar somente a dor e o sofrimento, mas enxergar e incentivar as pessoas a enxergarem em si mesmas aquilo que chamamos de pulsão de vida”, afirma.
Conheça mais sobre a temática:
Instagram
@saudementalpopnegra
@prapretoler
@prapretopsi
Site GELEDÉS Instituto da Mulher Negra: www.geledes.org.br
Livros
“Tornar-se negro: Ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social”, Neusa Santos Souza
“Pequeno manual antirracista”, Djamila Ribeiro
“Coleção Feminismos Plurais”, Coordenação Djamila Ribeiro